terça-feira, 8 de setembro de 2009

CHAMA DE MENINA

Um passo solitário até a morte
Terríveis sonhos que teve ontem
Quando sua mente, destemida, ousou abrir
O breu do inferno
Pairou no abismo

Viu que bichos habitavam lá
Paula sentia, no centro de si, o calafrio do cemitério
Descer avenidas
Invadir a sua casa
Penetrando na espinha
Na tatuagem das costas estava marcado o território
Dos anjos de uma asa só

Anjos expulsos e postos à chama do mistério
Ela procura as chaves enquanto a lua vai embora
Acelera fundo, destrói os muros
A garota abre caminhos
Ela é o vento
Paula e o seu sentimento
Menina ansiosa em ser mulher
No orvalho do amanhecer encontra o silêncio

Pára o carro.
- Um café e um pão com queijo, por favor.
Digere-se fazendo refeição.
O pesadelo agora é dia
segunda-feira faz começar o teatro do cotidiano
Que retorna forte
Desequilibrando as essências, os gostos raros, os nortes
E Paula nem mais sabia o que era noite, o que era dia...
Todo o seu corpo flutuava cinza
Sobre a inquietude das ideias do coração.

Pedro Paulo Rosa.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

DE REPENTE

O frio chegou de repente
Entrou por debaixo das frestas
Criou arrepio nas costas da moça
Morena adocicada com olhar ardente

Cheguei pela porta dos fundos
Entro devagar para não acordar o patrão
As mãos femininas já me esperam nos cantos escuros

Na sala do primeiro andar nos chocamos
Beijo a tez dessa mulher intensa. Quente...
A casa está vazia, todos dormem em outra dimensão, somos o cosmos
E o pão da aurora que sussurra
Dentre as montanhas nossos indecifráveis caminhos

Trigo assando, forno aquecendo os corpos
Desenhando o alimento dos vivos; quero seus gritos, urros e língua

Desço sua blusa, você a minha bermuda
Algodões saem das nuvens e forram os lençóis da cama
Onde piso agora é no grão de seus seios
O frio cessa na orquestra da chuva fina sobre a lama que se forma
Junto ao meio-dia

Nesse cotidiano clandestino parecemos ciganos
Fuçando ouro sob farsas
Percebendo a presa antes do bote
Só você e eu sabemos a chave do segredo, a porta do nosso medo
Só você e eu, morena, podemos nos defender do estilhaço do nosso enredo.
Pedro Paulo Rosa.

AMARGO SAL

- Saia já daí, menino! Se você não largar do pé do seu irmão, vou te meter o cacete!
Estrada cheia, mar de carros. Bíblias, Pulgas, dúvidas, calafrio e o sermão pastoral acompanhavam o rebanho dos trabalhadores exaustos talvez pelo laboro, talvez pela mesmice dos seus dias iguais. Frederico, filho de Guilherma, instigava o seu irmão mais novo, Guilherme, a brigar. Nove anos o primeiro; cinco o segundo. A mãe, morena bem apanhada, limpava quilos de roupa em uma lavanderia em Copacabana.
Hoje foi o dia em que trouxera os filhos, magros meninos, para conhecerem o “presente azul”. Para se fazer a surpresa, eles precisaram esperá-la sair do expediente.
- Mãe, demorou muito a senhora! Guilherme já vomitou três vezes de fome em cima do meu colo.
- Fome, Frederico? Dei dois tostões para vocês comprarem o sanduíche!
- Não deixaram nem a gente entrar pra comprar nada, ora! – replicou Frederico, com a pele espessa sob tanta sujeira mesclada à raiva por estar sentindo-se lesado e ridicularizado pelos balconistas das lanchonetes adjacentes.
- Parecem que tavam com medo de nós – continuou. Guilherme estava mais quieto, meio sonolento; de mãos dadas à mãe.
Guilherma desconversou, dizendo que os levaria para conhecerem o tal do “presente azul”, promessa feita há dois anos para os filhos. Pensando entre suspiros e lembranças, a mulher quis cuspir sobre os balconistas. Ora, são tão pobres quanto eu! Onde já se viu, pobre contra pobre?! Homem contra criança?!
A separação não se dava mais por quem não tinha dinheiro ou por quem o tivesse, media-se a inclusão pela aparência do que o exterior mostra. Tal constatação tornou-se um vibrante eco de desespero na cabeça da dedicada mãe.
- Esperem aqui, vou comprar um lanche pra vocês. Hambúrguer ou pão com ovo, meninos?
- Quero x-tudo! – gritou Guilherme
- Não vai dar para voltarmos pra casa. Ou ovo, ou hambúrguer. Trouxe o resto de coca-cola do patrão. Dá pra nós três muito bem, é só o Seu Frederico não meter a mãozona grande dele!
Eles riram, daqueles risos que, se você demorar mais, transfigura-se em lágrimas.
Ao término de cinco minutos Guilherma retornou com os lanches; o dela apenas foi o resto de coca-cola, em porção menor que a dos filhos. Houve insuficiente coragem para ela tirar deles a sua justa porção. As mães, geralmente, conseguem pegar para si as cicatrizes das peles da cria. Correm às mais altas montanhas sob o intuito de conseguir a última água da terra e a dão à prole.
Avenida Brasil cheia. Guilherma se segura no ferro do coletivo, Frederico e Guilherme sentados na escada da saída. Em dez minutos entram dois camelôs; um deles é uma criança de, no máximo, 12 anos. Vendedor de balas. O incrível é perceber tanta gente nascida do amargo vendendo o doce. O ar de conformidade nos rostos daqueles passageiros transformava-se em alegria quando presenciavam mercadorias doces, balas, bananadas, paçoca e cocada. A guloseima parecia pausar a vida incerta, bruta.
Antes de pegar o ônibus, a família foi conhecer o mar (“presente azul”). Os garotos jamais foram tocados pela maresia. Berros, corridas e brincadeiras entre os dois irmãos na praia. Guilherma olhou orgulhosa de si e dos filhos sadios correndo sobre a areia, por uma primeira vez. Ela desconhecia quando poderia ser a próxima. Entretanto observá-los desfrutando da inédita ação foi um êxtase, êxtase tão grande quanto o que a invadia ao se deitar com Naldo, seu segundo marido. O primeiro fora o pai dos filhos, um bêbado que se matou colocando-se em frente ao trem. Naldo não era o seu amor, ela sabia. Pelo menos, pensava, ele dava aos meninos a paciência que não receberam do pai verdadeiro.
Ver-da-dei-ro...Verdade o que seria para Guilherma? Para a estrada? Uma vida sobrevoada por fumaças opacas, exalando exclusão e desespero. Qual verdade ali, naquele contexto, haveria? O amor, eu arrisco nele.
Páro, olho no fundo dos olhos de Guilherma e levanto-me, oferecendo-a o assento. Ela aceita. Retribuo-a com um sorriso sem jeito e pergunto-me: onde guardo, debaixo de qual gaveta, atrás de que móvel, de qual CD resguardo àquela força determinada - que de tanto vigorante - brilhava nos olhos daquela mulher? Mulher comum e nobre; tão doce e tão amarga. Em pé, obtive uma visão melhor do cenário da família, percebendo que Guilherma estava acompanhada das suas duas crianças. Sorri igualmente a elas. Desde então, escutei toda a historia acima. De quando em quando, a lavadeira cessava o verbo para dar vazão às águas dos olhos escorrendo. E eu, ainda sem jeito, ainda indagante sobre meus próprios medos, escrúpulos e verdades. Limpei o amargo suor descendente de minha testa. Amargo Sal, mas lindo constatar a Vida dos que brigam por viver. E beber desse vigor.

Pedro Paulo Rosa.