sábado, 13 de fevereiro de 2010

AMOR DE QUALQUER ESPÉCIE


Saiu da rua com rosto de bêbado, corpo sedento, cansado das emoções fortes trazidas pela madrugada, dentro de sua garganta uma força o puxava para fora dele próprio, e o vômito cuspilava aos poucos entre o pescoço e a roupa. Na gafieira, o sucesso de sua dança não havia surtido tanto efeito quanto era esperado, afinal, seria naquele dia que pediria Aparecida em casamento, mas, em sua inocente língua, a moça fingiu não percebê-lo, entrou desvairada para o salão e só quis se esparramar nos braços do Coronel Fernão, eleito o mais novo prefeito da cidade.

Agora, já com a manhã anunciada pelas nuvens claras, ele vasculhava nas esquinas algum botequim aberto, aberto verdadeiramente, sem o Seu Joaquim ou o Seu Miguel lavando as calçadas sujas de ontem. Pediu a genebra cotidiana para acordar e, sentado na cadeira de ferro verde, contemplou a avenida, parecia mais limpa, com menos barulho de carros, motos, gente se mechendo fervendo em informação e destinos.

Embora esforçando-se, a figura do corpo de Aparecida, macio, nu, construído em divinais proporções, invadia-lhe cruelmente a concentração. Perturbado cada vez mais, competindo a sanidade e sonho, um cahorro magro interrompeu a divagação e pediu-lhe - com o olhar - um café da manhã reforçado. Comprou dois pães na manteiga e viveu o café da manhã com o novo amigo.

Meio dia e ele ainda ali, no boteco. O pão na manteiga já virara pó, transformado junto ao álcool que sempre descia pela garganta, esperando talvez uma nova explosão metabólica. Penalizado, o dono do bar interveio e pediu para que o nosso amigo fosse embora, não, não precisava acertar nada por hoje, amanhã à tarde ele voltaria para quitar as contas. O que tinha de fazer agora era ir para casa e pensar na vida, tomar um banho gelado e tentar dormir, aconselhava o comerciante ao seu antigo cliente.

De verdade, o Vicente ficou assim desde que a viuvez lhe entrou na vida, o dono do bar me dizia enquanto dividíamos um longo cigarro. Mas logo depois de uns dois anos que a mulher dele morreu, se enrabichou por Aparecida, menina mais bonita da cidade, dona de uns pares de pernas maravilhosos. Toda noite ela reina no samba dos homens mais ricos lá no palco da gafieira, e o Vicente só fica olhando para ela, babando, pedindo com os olhos o que o seu coração nunca vai receber. E o pior, ele no fundo sabe disso tudo, mas prefere repetir esse ritual de humilhação e desprezo todos os sábados. Engraçado isso, não é? Eu, nada saio perdendo, pois ele agora passou a destinar o seu salário para dois fins: a gafieira e a genebra do meu bar. E de brinde, ainda ganho a amizade e as confidências do cliente! Cruel, eu? Não, moço! Tô sendo realista. O cabra quer se enfiar na cachaça e o senhor quer que eu diga o quê? Não, Vicente, faz isso não, vai procurar a barra de um padre para chorar ou a gritaria de um pastor para te acordar??

Prefiro que Vicente se console aqui, nas cadeiras do meu bar. Pelo menos, é só a loucura dele mesmo que ele tem de aturar. As más línguas comentam que, de noite, ele sai de casa e anda até o cemitério para conversar com o túmulo de sua esposa. Rapaz, foi uma ruidade do destino, sabe? Eles acabaram de se casar e, passados dois meses, o carro da mulher desabou da ribanceira; isso, aquela mesma na entrada da cidade. Até o antigo prefeito foi ao velório com sua comitiva, pediram perdão pela Prefeitura ainda não ter efetivado os reparos, as obras. Mas o Vicente não quis mais saber de nada, ficou em choque umas semanas, deu seu cahorro - o adorava - ao meu filho e passou a frequentar a gafieira todo final de semana, o resto, o senhor sabe bem.

Impressionado com a derrocada do homem, desisti de qualquer entrevista com ele, pensei que ele poderia piorar muito mais se o procurasse para me falar um pouco dos quadros de sua esposa. Sim, sua esposa era artista plástica famosa, embora morrendo cedo, deixou relevante legado para o mercado nacional e internacional. Também um tanto desanimado, comprei meu novo maço de cigarros vermelhos, reabasteci o tanque do carro e fui embora daquela cidade. Ao chegar próximo do sobrado onde funcionava a gafieira avistei de longe a silhueta atraente de Aparecida, ela não me viu, mas pude constatar seu ato: fazia programa, aquela face inocente e infantil, realizava um rápido serviço agachada em frente às calças de Vicente na lateral escura da gafieira. Após vê-los, acelerei mais o carro para sair mais rápido dali e expirei aliviado. Ao menos, uma vez, Vicente voltara a sentir prazer em sua vida. Não seria com a minha matéria que ele retornaria à vitalidade, mas sim com um novo amor, mesmo combrado a dinheiro pouco. Dotado dessa rapariga linda, ele brevemente, não mais seria presa fácil da cachaça ou dos comerciantes simpáticos. A rapariga, de certa forma, o libertaria da crosta, da ostra em que ele mesmo se metera. Sim, o amor salva, de qualquer modo, de qualquer espécie. O prazer, sem dúvida, enobrece, em qualquer canto, sob qualquer prece.