segunda-feira, 31 de agosto de 2009

LAURA

A lua paira dentro da noite, vê os poucos transeuntes apressados em busca de alguma diversão noturna. Mas, para o animal malhado em marrom e branco a sua necessidade é sempre a mesma: Dar boa noite à sua dona. Ou melhor, ao que restou da amizade entre ambos.
Dona Laura, muito bem quista pelos seus vizinhos de vila, fez da sua vida uma poesia solitária. Aposentada, sem netos ou filhos, vivia acompanhada de suas bromélias e girassóis. Domingo era o dia predileto, quando ela colocava sua cadeira de balanço roxa no quintal de cimento frio e ficava a admirar sua floresta caseira. As plantas pareciam saltar dos vasos e conversarem com Dona Laura. De repente, porém, o frio do cimento a lembrava da comunicação muda dos vegetais, que apenas exercem a sua fala por meio do seu florescer. Laura encantava-se com essa magia. E metade do domingo passava ali, sentada entre cochilos e conversas com as plantas, no quintal dos fundos.
Eles se conheceram numa terça-feira nublada; Laura levantou-se cedo, foi à padaria adquirir os costumeiros pares de broa e pão doce e, no meio do caminho, deparou-se com uma caixa de papelão que miava. Aproximou-se, um jovem felino malhado. O primeiro lance de sentimentos foi o susto, depois retirou o animal dali e o levou para casa. Não sabia o que fazer com aquilo que se formava em acúmulo no seu peito. Um misto de euforia e curiosidade por aquele visitante. Passeou as senis mãos nos pelos do gato, na barriga, lembrou-se imediatamente da sensação de quando ganhou a primeira boneca de sua mãe, na infância longínqua, esta guardada em alguma das várias caixas de fotografia acima do armário do quarto.
“Vou ficar com você, querido.” – decidiu. O cotidiano dos dois foi crescendo e eles se tornaram grandes amigos. Sentia-se feliz por sua casa ter ganhado mais um morador. Mostrou ao felino as suas cartas da adolescência aos jovens rapazinhos que namorou. Foram poucos, mas intensos. O Ricardinho foi quem teve mais audácia. Transaram nus em cima do capu do seu primeiro carro, um fusca vermelho. Sob uma fina chuva. Os pais de Laura tinham casa em Teresópolis e, quando viajavam, a filha levava à casa de campo não apenas suas amigas (que a acobertavam sempre), mas também seus casinhos. Paulinha era a melhor amiga de Laura, desde a meninice até a sua morte. Trágico fim, atropelamento.
Os vizinhos não entendiam o porquê de Laura não mais pôr a cadeira no portão às sextas pela noite. Tocaram a companhia da senhora e a interpelaram. Laura mostrou-lhes o seu novo “amiguinho”, o gato malhado. Disse às vizinhas que, como já tinha um novo visitante fixo, preferia ficar dentro de casa conversando com ele. “A língua dos gatos é melhor que a dos humanos”. Meio confusas, as vizinhas assentiram com a cabeça, perguntando-se se a velha não estava já caduca.
Dante foi o nome de batismo do felino. Ela jamais imaginaria deixar a vida de modo tão distraído e inoportuno.
Dante ultrapassa as vielas escuras, alcança o muro do cemitério. Bem disposto, salta agilmente o muro e caminha ligeiro até o túmulo de sua única salvadora. Chega mais próximo, sobe no mármore negro e frio e nele aquieta-se durante horas, como se esperasse Laura ressuscitar da terra para conversar com ele sobre a infância dela, juventude e anseios do futuro. Para Dante os dez anos que repetia esse ritual fúnebre parecem apenas dez segundos. O tombo grave sofrido por Laura enquanto andava de bicicleta pelas ruas do bairro para mostrá-lo ipês amarelos surgia na cabeça do gato como se tivesse sido há pouco.
Ele não admitia Laura ter partido, não ter tido as suas mesmas sete vidas. Ele queria poder morrer junto com ela, queria poder quebrar o seu elixir sagrado da vida prolongada. Olhava os girassóis secos enquanto as teias iam se construindo nas janelas da casa e miava, tal qual quando filhote. Seu miado era alto, desesperado. Só encontrava sossego à noite, no cemitério, quando todos na rua tinham guardado seus pés dentro de cobertas e deixado o mundo vazio.
Reabastecido de amor e com menos farpas de saudade no seu peludo peito, Dante ficava sobre o túmulo até o sono lhe cobrir por inteiro, poupando-o de mais angústias, lembranças e madrugadas tristes.
Pedro Paulo Rosa.

Nenhum comentário: